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sexta-feira, 4 de junho de 2010

Gengibre & atividade física

Gengibre 

O nome científico do gengibre é Zingiber officinale. Essa planta indiana chegou ao Brazil no século 17, trazida com propósitos de cultivo medicinal pela Companhia das Índias Ocidentais, junto com café, alho, cebola, manga e outras. As propriedades medicinais da planta estão fortemente ligadas a um composto aromático chamado [6]-gingerol, que atualmente é usado como marcador químico do gengibre, na indústria fitoterápica. O [6]-gingerol é um inibidor da enzima ciclooxigenase-2, uma enzima essencialmente ligada aos processos de inflamação e dor.

Ciclooxigenases

A maioria dos lipídeos na membrana celular tem função constitutiva, para formar uma barreira contra água e sais. Alguns lipídeos da membrana celular, no entanto, têm função sinalizadora. São lipídeos com mais de 20 carbonos que servem de substratos para enzimas específicas, como as fosfolipases e ciclooxigenases. Quando a membrana é danificada ou um componente de bactérias é reconhecido (ex. lipopolissacarídeos da parede celular bacteriana ou mesmo toxinas), a célula ativa um conjunto de fosfolipases (fosfolipase C - PLC e fosfolipase A2 - PLA2) e ciclooxigenases (COX-1 e COX2). Cada tecido tem suas enzimas especificas, mas algumas são muito comuns. Os compostos resultantes dessas reações são diversos como as enzimas:

prostaglandinaefeito
PGI2vasodilatador
PGE2broncocontrição, vasoconstrição, modulação da secreção gástrica, contração uterina, lipólise e início da coagulação, ativação dos receptores de dor, ativação imunológica, regulação térmica no hipotálamo
PGF2contração de músculos lisos
TXA2início da coagulação, vasoconstrição

No hipotálamo, a PGE2 (prostaglandina E2) liberada pelas células (ou produzida ali mesmo por efeito de hormônios do sistema imunológico ativado) aumenta a temperatura corporal, causando a febre. Na pele e nos músculos, a PGE2 ativa os receptores de dor.

Como o [6]-gingerol bloqueia a COX2, seu efeito mais comum acaba sendo aliviar a febre e reduzir a dor causada por lesões na pele e nos músculos. Como a célula secretando PGE2 atrai neutrófilos e macrófagos que viajam pelo sangue, o [6]-gingerol também acaba reduzindo a inflamação dos tecidos que acontece depois de lesões.

Essa figura ao lado mostra leucócitos (células amarelas) atravessando a parede dos vasos para chegar até as bactérias (topo da figura). Essa atração (quimiotaxia) ocorre em resposta a componentes das bactérias que eles reconhecem, anticorpos e também prostaglandinas secretadas pelo tecido ao redor das bactérias. No caso de lesões musculares, não há bactérias: as células danificadas secretam PGE2 e atraem leucócitos do sangue.

O TXA2, produzido pelas plaquetas ativadas (lembra? células diferentes = prostaglandinas diferentes) causa vasoconstrição e inicia a formação de coágulos, o que aparece em azul na parte baixa da figura.

Na idade média, o chá de folhas do salgueiro (Salix alba) era usado como analgésico. Essa planta produz o ác. salicílico, que também é um bloqueador de ciclooxigenases. Em 1928, o composto foi isolado e potencializado na forma de ác. acetil-salicílico, o analgésico/anti-inflamatório mais comercializado até hoje.

Porque estou falando de inflamação e dor?

Durante uma atividade física, nem todas as fibras musculares são usadas. Quanto mais fibras são requisitadas pelo sistema nervoso, maior a força desenvolvida. Mesmo não usadas, porém, as fibras precisam ser distendidas e, para isso acontecer, as fibras de actina e miosina no citoesqueleto delas precisam deslizar umas sobre as outras. Na contração, actina e miosina são unidas pelo Ca2+; na distensão elas precisam estar livres de Ca2+ para ficarem soltas e deslizarem uma sobre a outra.

Normalmente, a eliminação de Ca2+ da células muscular é rápida. Assim que ocorre entrada de Ca2+ devido à ativação da fibra muscular, as Ca2+ ATPases (também chamadas de bombas de cálcio) reconhecem o cálcio no citoplasma e começam a consumir ATP para bombear ele para dentro do retículo e para fora da célula. Para ocorrer relaxamento da fibra, é preciso que 100% do Ca2+ seja removido do citoplasma. Na prática isso não é difícil, pois as bombas de cálcio existem em alta quantidade, na célula muscular.


Mas o nome Ca2+ ATPase significa que essas bombas de cálcio consomem ATP. Na verdade elas consomem MUITO ATP e são responsáveis pela maior parte da termogênese muscular. Como são muito necessárias, a célula precisa gerar muito ATP para elas funcionarem. Se essa produção começa a falhar, o Ca2+ não é 100% removido e um pouco dele vai se acumulando dentro da célula. Havendo Ca2+, actina e miosina se ligam! Na figura acima, SARCOLEMMA é a membrana externa da célula muscular. O retículo endoplasmático (SR) é um quadrado no centro da figura.

Com a acumulação de Ca2+ dentro das células musculares, elas vão adquirindo uma contração permanente. Todo mundo que pratica atividade física percebe isso ao final, quando os músculos parecem mais rígidos. O problema está em distender uma célula muscular que não consegue desligar as fibras de actina e miosina, por falta de ATP... Quando a célula em contração permanente é forçada a distender (porque existe um músculo opositor do outro lado, puxando o osso), ela sofre lesão. Muitas vezes essa lesão pode ser grande o suficiente para romper muitas células musculares. Normalmente, ela apenas desliga algumas células das suas vizinhas, mas isso já é suficiente para ativar as fosfolipases e ciclooxigenases da célula.


Se a célula não foi rompida, a PGE2 bloqueia a secreção de acetilcolina pelos neurônios. Ou seja: o músculo fatigado deixa de responder ao sistema nervoso. Quem já tentou usar um músculo fatigado sabe do que estou falando... Se as células musculares foram rompidas, muito pior: as prostaglandinas produzidas por elas (especialmente PGE2) extravasam em quantidade. Os neurônios sensoriais nos músculos detectam a PGE2 rapidamente, criando a sensação de dor. A PGE2 atrai leucócitos, que em algumas horas inflamam o músculo e liberam mais PGE2, aumentando a sensação de dor. Nessa figura acima, repare no círculo no 1, onde você vai encontrar as prostaglandinas iniciando a sensação de dor, com o sinal nervoso viajando até o córtex somatosensorial, onde o cérebro interpreta o que chamamos de "dor". Por isso, o exercício forçado causa dor, mas várias horas após o exercício pode ainda ocorrer um grande aumento na dor muscular.

O gengibre parece feito para combater esse tipo de fadiga muscular: o [6]-gingerol bloqueia a produção de PGE2, impedindo a diminuição do fluxo sanguíneo e a inflamação. O gengibre ainda possui um outro componente, o [6]-shogaol, conhecido por sua ação analgésica e de-sensibilizadora dos canais de Ca2+ chamados TRPV1, específicos dos neurônios sensoriais de dor.  Mais especificamente, os canais TRPV1 são específicos das chamadas fibras C lentas (sem bainha de mielina), ativados pelos processos inflamatórios. Agindo sobre esse tipo de neurônios, o [6]-shogaol faz com que não sintamos dor mesmo se os músculos tiverem sido lesionados.

Assim, ele diminui a entrada de Ca2+ na célula muscular, evitando que a fadiga ocorra. A figura ao lado mostra a contração de células musculares quando são adicionados K+ 80 mM (que causa despolarização por impedir a saída de potássio K+ pelos canais abertos) ou fenilefrina (PE 1 uM), uma droga que imita com precisão o efeito da noradrenalina. As duas situações foram usadas para forçar a contração da célula muscular, junto com doses de extrato de gengigre (Zo.Cr) variando de 0 até 10 mg/mL. Repare que, com 0.5 mg/mL (isso é muuuuuuuito gengibre, metade do que existe de glicose no sangue), o potássio não funciona mais. Acima de 1 mg/mL de gengibre (sangue  = quentão circulante, nessa concentração), a fenilefrina não funciona mais, também.


Referências
  1. Dean W, A botanica e apolitica imperial: a introdução e a domesticação de plantas no Brasil, Estudos Históricos, Rio de Janeiro 4(8):216-228, 1991.
  2. http://en.wikipedia.org/wiki/Prostaglandin
  3. Jolad SD, Lantz RC, Solyom AM, Chen GJ, Bates RB, Timmermann BN, Fresh organically grown ginger (Zingiber officinale): composition and effects on LPS-induced PGE2 production, Phytochemistry 65:1937–1954, 2004.
  4. Young HY, Luo YL, Cheng HY, Hsieh WC, Liao JC, Peng WH, Analgesic and anti-inflammatory activities of [6]-gingerol, J Ethnopharmacology 96(1-2):207-210, 2005.
  5. http://en.wikipedia.org/wiki/Mechanism_of_action_of_aspirin
  6. Ghayur MN, Gilani AH, Ginger lowers blood pressure through blockade of voltage-dependent calcium channels, J Cardiovascular Pharmacology 45(1):74-80, 2005.
  7. Fortier MA, Krishnaswamy K, Danyod D, Boucher-Kovalik S, P. Chapdelaine PJA, J Physiol Pharmacol 59 Suppl 1:65-89, 2008.
  8. Black CD, Herring MP, Hurley DJ, O'Connor PJ, Ginger (Zingiber officinale) reduces muscle pain caused by eccentric exercise, J Pain, 2010 (artigo disponível online, ainda não impresso).
  9. http://en.wikipedia.org/wiki/TRPV1



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